Há duas espécies de "desistir" ou de "largar". Há o desistir de apegos
e há o desistir em razão de dificuldades e decepções.
A pessoa que tem força e abertura interiores não "desiste" - mas larga
as ambições e os apegos; por conseguinte, ganha liberdade e confiança.
Porque não tem apego a uma certa maneira de ser, mas segue a verdade
dentro do seu coração, nenhum obstáculo ou decepção pode vencê-la.
A pessoa que desiste por que não pode controlar sua vida nem guiar-se
por si mesma não desiste totalmente; mantém certa determinação de
continuar, mas não tem a força ou a coragem de seguir suas inclinações
- limita-se a submeter-se ao que quer que esteja acontecendo.
Como não é capaz de largar suas ambições e emoções negativas,
não está claro para ela qual é o caminho certo e qual o caminho errado
- e portanto ela sofre na indecisão. Embora necessariamente não sinta
dor física, ela passa por um sofrimento psicológico - a dor de não ser capaz
de apreender o que deseja. O desejo por sensação a domina, e ela está
dividida dentro de si mesma.
Tarthang Tulku
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008
ROLAND BARTHES
Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões
posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um.
O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade
do meu desejo.
Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes
(e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que,
entre mil, convém ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual
nunca terei a solução: por que desejo Esse? Por que o desejo por
tanto tempo, languidamente? É ele inteiro que desejo (uma silhueta,
uma forma, uma aparência)? Ou é apenas uma parte desse corpo?
E nesse caso, o que, nesse corpo amado, tem tendência de
fetiche em mim? Que porção, talvez incrivelmente pequena,
que acidente? O corte de uma unha, um dente um pouquinho
quebrado obliquamente, uma mecha, uma maneira de fumar
afastando os dedos para falar? De todos esses relevos do corpo
tenho vontade de dizer que são adoráveis. Adorável quer
dizer: este é meu desejo, tanto que único:
“É isso! É exatamente isso (que amo)!”
Roland Barthes - Fragmentos de um discurso amoroso
posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um.
O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade
do meu desejo.
Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes
(e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que,
entre mil, convém ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual
nunca terei a solução: por que desejo Esse? Por que o desejo por
tanto tempo, languidamente? É ele inteiro que desejo (uma silhueta,
uma forma, uma aparência)? Ou é apenas uma parte desse corpo?
E nesse caso, o que, nesse corpo amado, tem tendência de
fetiche em mim? Que porção, talvez incrivelmente pequena,
que acidente? O corte de uma unha, um dente um pouquinho
quebrado obliquamente, uma mecha, uma maneira de fumar
afastando os dedos para falar? De todos esses relevos do corpo
tenho vontade de dizer que são adoráveis. Adorável quer
dizer: este é meu desejo, tanto que único:
“É isso! É exatamente isso (que amo)!”
Roland Barthes - Fragmentos de um discurso amoroso
Aquele que não se leva a sério deve estar entre os mais sábios dos sábios,
e, como tal, vive a vida com suprema dignidade. Não se levar a sério
significa questionar constantemente os próprios valores, trocando-os
por outros sempre que isso possa enriquecer o conhecimento, mas
significa principalmente encarar a vida com humor, transmitindo-o aos
que o cercam como antídoto para os inevitáveis problemas do cotidiano.
As pessoas mais sábias são as que se conhecem profundamente.
Quanto mais instruída é uma pessoa, menos a sério ela se leva,
porque o conhecimento descoberto e adquirido torna nítidas a efemeridade
de todas as coisas, a luta insana pela posse de bens materiais e a
busca obsessiva da satisfação dos sentidos.
J. C. Ismael - Sócrates e a Arte de Viver
e, como tal, vive a vida com suprema dignidade. Não se levar a sério
significa questionar constantemente os próprios valores, trocando-os
por outros sempre que isso possa enriquecer o conhecimento, mas
significa principalmente encarar a vida com humor, transmitindo-o aos
que o cercam como antídoto para os inevitáveis problemas do cotidiano.
As pessoas mais sábias são as que se conhecem profundamente.
Quanto mais instruída é uma pessoa, menos a sério ela se leva,
porque o conhecimento descoberto e adquirido torna nítidas a efemeridade
de todas as coisas, a luta insana pela posse de bens materiais e a
busca obsessiva da satisfação dos sentidos.
J. C. Ismael - Sócrates e a Arte de Viver
HERMANN HESSE
Caminhando cada vez mais devagar, absorvido pelos pensamentos,
Sidarta perguntou-se a si mesmo: “Mas que desejaste aprender dos
teus mestres e extrair dos seus preceitos? Que será aquilo que eles,
que tanto te ensinaram, não conseguiram propiciar-te?”
E ele encontrou a resposta: “Era meu desejo conhecer o sentido
e a essência do Eu, para desprender-me dele e para superá-lo.
Porém não pude superá-lo. Apenas logrei iludi-lo. Consegui, sim,
fugir dele e furtar-me às suas vistas. Realmente, nada neste mundo
preocupou-me tanto quanto esse Eu, esse mistério de estar vivo,
de ser um indivíduo, de achar-me separado e isolado de todos os
demais, de ser Sidarta! E de coisa alguma sei menos do que sei
quanto a mim, Sidarta!”
Hermann Hesse - Sidarta
Sidarta perguntou-se a si mesmo: “Mas que desejaste aprender dos
teus mestres e extrair dos seus preceitos? Que será aquilo que eles,
que tanto te ensinaram, não conseguiram propiciar-te?”
E ele encontrou a resposta: “Era meu desejo conhecer o sentido
e a essência do Eu, para desprender-me dele e para superá-lo.
Porém não pude superá-lo. Apenas logrei iludi-lo. Consegui, sim,
fugir dele e furtar-me às suas vistas. Realmente, nada neste mundo
preocupou-me tanto quanto esse Eu, esse mistério de estar vivo,
de ser um indivíduo, de achar-me separado e isolado de todos os
demais, de ser Sidarta! E de coisa alguma sei menos do que sei
quanto a mim, Sidarta!”
Hermann Hesse - Sidarta
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008
RAINER M. RILKE
O destino gosta de inventar desenhos e
figuras. A sua dificuldade reside no que
é complicado. A própria vida, porém, tem
a dificuldade da simplicidade. No amor,
sempre a amante ultrapassa o amado,
porque a vida é maior do que o destino.
A sua entrega quer ser sem medida: esta
é a sua felicidade. A dor inominada do seu
amor, foi sempre esta: exigirem-lhe que
limitasse essa entrega.
(RAINER MARIA RILKE)
figuras. A sua dificuldade reside no que
é complicado. A própria vida, porém, tem
a dificuldade da simplicidade. No amor,
sempre a amante ultrapassa o amado,
porque a vida é maior do que o destino.
A sua entrega quer ser sem medida: esta
é a sua felicidade. A dor inominada do seu
amor, foi sempre esta: exigirem-lhe que
limitasse essa entrega.
(RAINER MARIA RILKE)
KRISHNAMURTI
A vida é como um rio: move-se incessantemente, procurando,
explorando, penetrando cada fenda com suas águas. A mente
não se permite ser como um rio, para ela é arriscado viver em
estado de impermanência; então ela constrói muros em torno
dela: o muro da tradição da religião, das teorias sociais e políticas.
Família, posses, pequenas virtudes -- tudo está dentro dos muros.
A vida é movimento, impermanência, e ela tenta penetrar, romper
esses muros, atrás do qual se esconde a confusão. Os deuses
dentro dos muros são falsos deuses, e seus escritos e filosofias
não têm significado porque a vida está além deles. A mente que
busca permanência se torna estática. Apenas a mente sem muros
se move juntamente com a vida, e somente assim pode ser feliz
e eternamente nova, porque é criativa em si mesma.
KRISHNAMURTI
explorando, penetrando cada fenda com suas águas. A mente
não se permite ser como um rio, para ela é arriscado viver em
estado de impermanência; então ela constrói muros em torno
dela: o muro da tradição da religião, das teorias sociais e políticas.
Família, posses, pequenas virtudes -- tudo está dentro dos muros.
A vida é movimento, impermanência, e ela tenta penetrar, romper
esses muros, atrás do qual se esconde a confusão. Os deuses
dentro dos muros são falsos deuses, e seus escritos e filosofias
não têm significado porque a vida está além deles. A mente que
busca permanência se torna estática. Apenas a mente sem muros
se move juntamente com a vida, e somente assim pode ser feliz
e eternamente nova, porque é criativa em si mesma.
KRISHNAMURTI
JEAN BAUDRILLARD
Hoje julgamos todas as coisas a partir de um encadeamento
real e racional. Mas com a mesma força e razão poderíamos
referi-las a um encadeamento irracional -- basta inverter a
perspectiva de uma transcendência providencial para uma
transcendência maléfica. Ficaríamos menos desesperados
se pensássemos que cada desgraça estaria justificada com
relação a uma ordem do mal. Tal é a regra do otimismo radical.
É preciso fazer do mal a regra do jogo. É então que a exceção
passa a ser a da felicidade. É a alegria que se torna fatal.
Confere ao bem e à felicidade um prestígio novo: o de uma
miraculosa exceção.
JEAN BAUDRILLARD
real e racional. Mas com a mesma força e razão poderíamos
referi-las a um encadeamento irracional -- basta inverter a
perspectiva de uma transcendência providencial para uma
transcendência maléfica. Ficaríamos menos desesperados
se pensássemos que cada desgraça estaria justificada com
relação a uma ordem do mal. Tal é a regra do otimismo radical.
É preciso fazer do mal a regra do jogo. É então que a exceção
passa a ser a da felicidade. É a alegria que se torna fatal.
Confere ao bem e à felicidade um prestígio novo: o de uma
miraculosa exceção.
JEAN BAUDRILLARD
CARLOS NEJAR
Ó eternidade... como temos que enterrar o que somos,
aos poucos, depois o que não somos nem seremos
nunca... E toda a terra conhece por demais a
extravagância humana, a ponta da alma enfiada
na piedade. Com a derradeira, porosa escuridão.
A eternidade não seria pequena aos nossos mais
perfeitos sonhos?
Não, a eternidade são os nossos mais perfeitos sonhos.
CARLOS NEJAR
aos poucos, depois o que não somos nem seremos
nunca... E toda a terra conhece por demais a
extravagância humana, a ponta da alma enfiada
na piedade. Com a derradeira, porosa escuridão.
A eternidade não seria pequena aos nossos mais
perfeitos sonhos?
Não, a eternidade são os nossos mais perfeitos sonhos.
CARLOS NEJAR
FERNANDO PESSOA
Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o
que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento,
que é o que se chama cultura. Mas há uma erudição da
sensibilidade; que nada tem a ver com a experiência de vida.
A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa.
A verdadeira experiência consiste em restringir o contato
com a realidade e aumentar a análise desse contato. Assim a
sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está
tudo; basta que o procuremos e saibamos procurar.
FERNANDO PESSOA
que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento,
que é o que se chama cultura. Mas há uma erudição da
sensibilidade; que nada tem a ver com a experiência de vida.
A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa.
A verdadeira experiência consiste em restringir o contato
com a realidade e aumentar a análise desse contato. Assim a
sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está
tudo; basta que o procuremos e saibamos procurar.
FERNANDO PESSOA
BALTASAR GRÁCIAN
Conhecer os próprios defeitos é tarefa árdua.
Até o homem mais perfeito não escapa deles.
Existem defeitos do intelecto, e eles são maiores
- ou se notam mais facilmente - em pessoas de
grande inteligência. Não porque a pessoa não
tenha consciência deles, mas porque os ama.
Dois males em um: afeição irracional, concedida
aos vícios. Trata-se de manchas no rosto da
perfeição. Aqui o esforçado deve vencer a si
mesmo, pois os defeitos são notados rapidamente
por todos. Em vez de admirarem nosso talento,
repisam nosso defeito, usando-o para diminuir
nossos outros dons.
(BALTASAR GRÁCIAN)
Até o homem mais perfeito não escapa deles.
Existem defeitos do intelecto, e eles são maiores
- ou se notam mais facilmente - em pessoas de
grande inteligência. Não porque a pessoa não
tenha consciência deles, mas porque os ama.
Dois males em um: afeição irracional, concedida
aos vícios. Trata-se de manchas no rosto da
perfeição. Aqui o esforçado deve vencer a si
mesmo, pois os defeitos são notados rapidamente
por todos. Em vez de admirarem nosso talento,
repisam nosso defeito, usando-o para diminuir
nossos outros dons.
(BALTASAR GRÁCIAN)
IBSEN
Há verdades que alcançaram uma idade tal,
que realmente sobreviveram a si mesmas. E,
quando se tornam velhas assim, estão a
caminho de se transformar em mentira. As
verdades que envelhecem tornam-se decrépitas
e duvidosas. Podem às vezes ser utilizadas
artificialmente, mas não têm vida. Isso explica
por que, quando as pessoas ficam desapontadas
com as novas idéias, o retorno às velhas não
ajuda muito. As idéias podem ser velhas demais.
(IBSEN)
que realmente sobreviveram a si mesmas. E,
quando se tornam velhas assim, estão a
caminho de se transformar em mentira. As
verdades que envelhecem tornam-se decrépitas
e duvidosas. Podem às vezes ser utilizadas
artificialmente, mas não têm vida. Isso explica
por que, quando as pessoas ficam desapontadas
com as novas idéias, o retorno às velhas não
ajuda muito. As idéias podem ser velhas demais.
(IBSEN)
ORÍGENES LESSA
O BICHO HOMEM
Nunca vi bicho mais feroz do que o homem, animal que
vive armado. Alguém já viu cachorro de faca, de metralhadora
ou de bomba? O cão, quando luta, sempre em legítima defesa,
ou na defesa de seus amigos humanos, é na garra, é no dente.
O homem, pouco confiado nos seus braços e dentes
(a maior parte usa dentadura), inventou os meios mais
terríveis de destruição. Nem gosto de falar.
Tive um amiguinho japonês (cachorro, bem entendido) que
contava de duas cidades de seu país completamente
destruídas por uma tal bomba atômica.
Trabalho de americano... Gente que dizem gostar muito de
cachorro... Morreu gente e cachorro, naquelas explosões, de dar pena.
Os homens se desróem de maneira espantosa e às vezes
curiosa. Quando um mata um, é preso. Fazem discursos, falam
muito, o assassino, conforme o caso é condenado.
Quando mata uma porção, ganha medalha.
Torna-se herói. São as tais guerras, que duram tempos sem fim.
Sempre na base de instrumentos poderosos de destrição.
Nós raramente temos guerras, mas é sempre na base leal do
corpo a corpo, do dente a dente. É muito mais nobre.
Orígenes Lessa, Confissões de um Vira-Lata.
Nunca vi bicho mais feroz do que o homem, animal que
vive armado. Alguém já viu cachorro de faca, de metralhadora
ou de bomba? O cão, quando luta, sempre em legítima defesa,
ou na defesa de seus amigos humanos, é na garra, é no dente.
O homem, pouco confiado nos seus braços e dentes
(a maior parte usa dentadura), inventou os meios mais
terríveis de destruição. Nem gosto de falar.
Tive um amiguinho japonês (cachorro, bem entendido) que
contava de duas cidades de seu país completamente
destruídas por uma tal bomba atômica.
Trabalho de americano... Gente que dizem gostar muito de
cachorro... Morreu gente e cachorro, naquelas explosões, de dar pena.
Os homens se desróem de maneira espantosa e às vezes
curiosa. Quando um mata um, é preso. Fazem discursos, falam
muito, o assassino, conforme o caso é condenado.
Quando mata uma porção, ganha medalha.
Torna-se herói. São as tais guerras, que duram tempos sem fim.
Sempre na base de instrumentos poderosos de destrição.
Nós raramente temos guerras, mas é sempre na base leal do
corpo a corpo, do dente a dente. É muito mais nobre.
Orígenes Lessa, Confissões de um Vira-Lata.
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