HERA E ZEUS

JOHN DELVILLE

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

DESISTIR

Há duas espécies de "desistir" ou de "largar". Há o desistir de apegos
e há o desistir em razão de dificuldades e decepções.
A pessoa que tem força e abertura interiores não "desiste" - mas larga
as ambições e os apegos; por conseguinte, ganha liberdade e confiança.
Porque não tem apego a uma certa maneira de ser, mas segue a verdade
dentro do seu coração, nenhum obstáculo ou decepção pode vencê-la.
A pessoa que desiste por que não pode controlar sua vida nem guiar-se
por si mesma não desiste totalmente; mantém certa determinação de
continuar, mas não tem a força ou a coragem de seguir suas inclinações
- limita-se a submeter-se ao que quer que esteja acontecendo.
Como não é capaz de largar suas ambições e emoções negativas,
não está claro para ela qual é o caminho certo e qual o caminho errado
- e portanto ela sofre na indecisão. Embora necessariamente não sinta
dor física, ela passa por um sofrimento psicológico - a dor de não ser capaz
de apreender o que deseja. O desejo por sensação a domina, e ela está
dividida dentro de si mesma.


Tarthang Tulku

ROLAND BARTHES

Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões

posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um.

O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade

do meu desejo.

Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes

(e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que,

entre mil, convém ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual

nunca terei a solução: por que desejo Esse? Por que o desejo por

tanto tempo, languidamente? É ele inteiro que desejo (uma silhueta,

uma forma, uma aparência)? Ou é apenas uma parte desse corpo?

E nesse caso, o que, nesse corpo amado, tem tendência de

fetiche em mim? Que porção, talvez incrivelmente pequena,

que acidente? O corte de uma unha, um dente um pouquinho

quebrado obliquamente, uma mecha, uma maneira de fumar

afastando os dedos para falar? De todos esses relevos do corpo

tenho vontade de dizer que são adoráveis. Adorável quer

dizer: este é meu desejo, tanto que único:

“É isso! É exatamente isso (que amo)!”



Roland Barthes - Fragmentos de um discurso amoroso
Aquele que não se leva a sério deve estar entre os mais sábios dos sábios,

e, como tal, vive a vida com suprema dignidade. Não se levar a sério

significa questionar constantemente os próprios valores, trocando-os

por outros sempre que isso possa enriquecer o conhecimento, mas

significa principalmente encarar a vida com humor, transmitindo-o aos

que o cercam como antídoto para os inevitáveis problemas do cotidiano.

As pessoas mais sábias são as que se conhecem profundamente.

Quanto mais instruída é uma pessoa, menos a sério ela se leva,

porque o conhecimento descoberto e adquirido torna nítidas a efemeridade

de todas as coisas, a luta insana pela posse de bens materiais e a

busca obsessiva da satisfação dos sentidos.



J. C. Ismael - Sócrates e a Arte de Viver

HERMANN HESSE

Caminhando cada vez mais devagar, absorvido pelos pensamentos,

Sidarta perguntou-se a si mesmo: “Mas que desejaste aprender dos

teus mestres e extrair dos seus preceitos? Que será aquilo que eles,

que tanto te ensinaram, não conseguiram propiciar-te?”

E ele encontrou a resposta: “Era meu desejo conhecer o sentido

e a essência do Eu, para desprender-me dele e para superá-lo.

Porém não pude superá-lo. Apenas logrei iludi-lo. Consegui, sim,

fugir dele e furtar-me às suas vistas. Realmente, nada neste mundo

preocupou-me tanto quanto esse Eu, esse mistério de estar vivo,

de ser um indivíduo, de achar-me separado e isolado de todos os

demais, de ser Sidarta! E de coisa alguma sei menos do que sei

quanto a mim, Sidarta!”



Hermann Hesse - Sidarta

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

RAINER M. RILKE

O destino gosta de inventar desenhos e

figuras. A sua dificuldade reside no que

é complicado. A própria vida, porém, tem

a dificuldade da simplicidade. No amor,

sempre a amante ultrapassa o amado,

porque a vida é maior do que o destino.

A sua entrega quer ser sem medida: esta

é a sua felicidade. A dor inominada do seu

amor, foi sempre esta: exigirem-lhe que

limitasse essa entrega.


(RAINER MARIA RILKE)

KRISHNAMURTI

A vida é como um rio: move-se incessantemente, procurando,

explorando, penetrando cada fenda com suas águas. A mente

não se permite ser como um rio, para ela é arriscado viver em

estado de impermanência; então ela constrói muros em torno

dela: o muro da tradição da religião, das teorias sociais e políticas.

Família, posses, pequenas virtudes -- tudo está dentro dos muros.

A vida é movimento, impermanência, e ela tenta penetrar, romper

esses muros, atrás do qual se esconde a confusão. Os deuses

dentro dos muros são falsos deuses, e seus escritos e filosofias

não têm significado porque a vida está além deles. A mente que

busca permanência se torna estática. Apenas a mente sem muros

se move juntamente com a vida, e somente assim pode ser feliz

e eternamente nova, porque é criativa em si mesma.



KRISHNAMURTI

JEAN BAUDRILLARD

Hoje julgamos todas as coisas a partir de um encadeamento

real e racional. Mas com a mesma força e razão poderíamos

referi-las a um encadeamento irracional -- basta inverter a

perspectiva de uma transcendência providencial para uma

transcendência maléfica. Ficaríamos menos desesperados

se pensássemos que cada desgraça estaria justificada com

relação a uma ordem do mal. Tal é a regra do otimismo radical.

É preciso fazer do mal a regra do jogo. É então que a exceção

passa a ser a da felicidade. É a alegria que se torna fatal.

Confere ao bem e à felicidade um prestígio novo: o de uma

miraculosa exceção.


JEAN BAUDRILLARD

CARLOS NEJAR

Ó eternidade... como temos que enterrar o que somos,

aos poucos, depois o que não somos nem seremos

nunca... E toda a terra conhece por demais a

extravagância humana, a ponta da alma enfiada

na piedade. Com a derradeira, porosa escuridão.

A eternidade não seria pequena aos nossos mais

perfeitos sonhos?

Não, a eternidade são os nossos mais perfeitos sonhos.


CARLOS NEJAR

FERNANDO PESSOA

Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o

que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento,

que é o que se chama cultura. Mas há uma erudição da

sensibilidade; que nada tem a ver com a experiência de vida.

A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa.

A verdadeira experiência consiste em restringir o contato

com a realidade e aumentar a análise desse contato. Assim a

sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está

tudo; basta que o procuremos e saibamos procurar.


FERNANDO PESSOA

BALTASAR GRÁCIAN

Conhecer os próprios defeitos é tarefa árdua.

Até o homem mais perfeito não escapa deles.

Existem defeitos do intelecto, e eles são maiores

- ou se notam mais facilmente - em pessoas de

grande inteligência. Não porque a pessoa não

tenha consciência deles, mas porque os ama.

Dois males em um: afeição irracional, concedida

aos vícios. Trata-se de manchas no rosto da

perfeição. Aqui o esforçado deve vencer a si

mesmo, pois os defeitos são notados rapidamente

por todos. Em vez de admirarem nosso talento,

repisam nosso defeito, usando-o para diminuir

nossos outros dons.


(BALTASAR GRÁCIAN)

IBSEN

Há verdades que alcançaram uma idade tal,

que realmente sobreviveram a si mesmas. E,

quando se tornam velhas assim, estão a

caminho de se transformar em mentira. As

verdades que envelhecem tornam-se decrépitas

e duvidosas. Podem às vezes ser utilizadas

artificialmente, mas não têm vida. Isso explica

por que, quando as pessoas ficam desapontadas

com as novas idéias, o retorno às velhas não

ajuda muito. As idéias podem ser velhas demais.



(IBSEN)

ORÍGENES LESSA

O BICHO HOMEM


Nunca vi bicho mais feroz do que o homem, animal que
vive armado. Alguém já viu cachorro de faca, de metralhadora
ou de bomba? O cão, quando luta, sempre em legítima defesa,
ou na defesa de seus amigos humanos, é na garra, é no dente.
O homem, pouco confiado nos seus braços e dentes
(a maior parte usa dentadura), inventou os meios mais
terríveis de destruição. Nem gosto de falar.
Tive um amiguinho japonês (cachorro, bem entendido) que
contava de duas cidades de seu país completamente
destruídas por uma tal bomba atômica.
Trabalho de americano... Gente que dizem gostar muito de
cachorro... Morreu gente e cachorro, naquelas explosões, de dar pena.

Os homens se desróem de maneira espantosa e às vezes
curiosa. Quando um mata um, é preso. Fazem discursos, falam
muito, o assassino, conforme o caso é condenado.
Quando mata uma porção, ganha medalha.
Torna-se herói. São as tais guerras, que duram tempos sem fim.
Sempre na base de instrumentos poderosos de destrição.
Nós raramente temos guerras, mas é sempre na base leal do
corpo a corpo, do dente a dente. É muito mais nobre.


Orígenes Lessa, Confissões de um Vira-Lata.