HERA E ZEUS

JOHN DELVILLE

quinta-feira, 17 de julho de 2008

FERNANDO PESSOA

A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre
entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver.
Somos contentes porque até ao pensar e ao sentir, somos capazes
de não acreditar na existência da alma. No baile de máscaras que
vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo. Somos
servos das luzes e das cores, vamos na dança como na verdade,
nem há para nós – salvo se, desertos, não dançamos – conhecimento
do grande frio do alto da noite externa, do corpo mortal por baixo
dos trapos que lhe sobrevivem, de tudo quanto, a sós, julgamos que
é essencialmente nós, mas afinal não é senão a paródia íntima da
verdade do que nos supomos. Se alguma coisa há que esta vida tem
para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses,
é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhercermos a nós
mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A alma humana é
um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do
mundo. Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse, e
assim, não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual,
morreríamos na alma de anemia. Ninguém conhece outro, e ainda
bem que o não conhece, e, se o conhecesse, conheceria nele, ainda
que mãe, mulher ou filho, o íntimo, metafísico inimigo.


FERNANDO PESSOA

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